Ela nasceu pobre, filha ilegítima de
um carpinteiro violento e alcoólatra e sua concubina, e seu sonho (fracassado)
era ser estrela de cinema.
No entanto, o destino a tornaria a mulher
mais poderosa — e também a mais temida — da China.
Essa é a história de Jiang Qing, também
conhecida como Chiang Ching, quem o Ocidente apelidou de "Madame
Mao".
Jiang nasceu em 1914 com o nome de Li
Shu-meng, mas ao longo de sua vida adotou uma série de pseudônimos.
Em sua adolescência, se casou com um
comerciante, mas depois de alguns meses eles se divorciaram. Ela, então,
começou um relacionamento com um ativista do Partido Comunista da China (PCC),
do qual se tornaria membro.
O PCC, que acaba de celebrar seu centenário, foi perseguido pelo governante Partido Nacionalista Chinês (ou Kuomintang) e operava na clandestinidade.
Aos 20 anos, a aspirante a atriz mudou-se
para Xangai, o principal centro cosmopolita da época, conhecido como a
"Pérola do Oriente", onde funcionava a meca da indústria
cinematográfica chinesa.
Logo após sua chegada, em 1934, foi presa por
ser comunista e passou alguns meses atrás das grades, mas isso não a impediu de
perseguir seu sonho.
Após sua libertação, mudou seu nome artístico
para Lan Ping ("Maçã Azul") e se reinventou.
Jiang conseguiu um papel como protagonista em
uma peça de teatro — Nora em "Casa de Bonecas" — do dramaturgo
norueguês Henrik Ibsen (1828-1906), e alguns papeis menores no cinema, mas não
convenceu os magnatas da indústria cinematográfica, uma rejeição que a marcaria
por toda a vida.
Durante esse tempo, se apaixonou pelo ator e
diretor Tang Na, com quem se casou. Depois de um relacionamento conturbado,
eles acabariam se divorciando em 1937.
De acordo com a biografia do historiador
australiano Ross Terrill, Madame Mao: The White-Boned Demon ("Madame
Mao, o demônio de ossos brancos", em tradução livre para o português), a
futura esposa de Mao levou uma vida burguesa e decadente durante esse tempo em
Xangai.
Ela também se tornou famosa, principalmente
por seu relacionamento tempestuoso com Tang, uma fama que mais tarde tentaria
apagar à força após uma nova transformação como Jiang Qing ("Rio
Verde"), a recatada militante comunista que faria o líder do PCC, Mao
Zedong, se apaixonar.
Mudança de vida
Jiang conheceu Mao na cidade de Yan'an, no
norte da China, onde o quartel-general do PCC havia sido instalado após a
chamada 'Grande Marcha' da antiga base comunista no sul do país.
A atriz decidiu viajar para lá após a invasão
japonesa de Xangai em 1937, com a intenção de participar de filmes de
propaganda comunista.
No entanto, alguns dos mesmos produtores de
filmes que a rejeitaram em Xangai viraram as costas para ela novamente.
Biografias dizem que Jiang conseguiu atrair a
atenção de Mao durante as palestras públicas que o líder do PCC dava aos
jovens.
Ela sentava-se na primeira fila e sempre
fazia perguntas e comentários entusiasmados.
O relacionamento entre Jiang e Mao não era
bem visto por outros líderes comunistas. Por um lado, porque a profissão de
ator não era bem vista. Mas, acima de tudo, porque Mao — que tinha quase o
dobro da idade de Jiang — era casado.
Sua esposa (a terceira, depois de um breve
casamento arranjado e um casamento com uma ativista executada pelo Kuomintang)
era mãe de seis filhos de Mao e morava temporariamente na vizinha União
Soviética (URSS), onde recebia tratamento para uma doença.
No entanto, — e, de acordo com alguns
relatos, antes do anúncio de que Jiang estava grávida — a liderança do partido
concordou em permitir que Mao se divorciasse e se casasse novamente.
No entanto, a permissão foi concedida sob uma
condição: que a quarta esposa de Mao não se envolvesse em assuntos políticos
(alguns dizem que foi especificado que ela permaneceria fora do poder por pelo
menos 20 anos).
De secretária a "censora"
Vários relatos da época mostram que o casal
cumpriu o acordo, e Jiang limitou-se ao segundo plano, atuando como uma das
secretárias do marido e criando sua filha, Li Na, enquanto o poder dele
crescia.
Uma década depois, os comunistas finalmente
venceram a guerra civil e, em 1º de outubro de 1949, fundaram a República
Popular da China (RPC), liderada por Mao.
Ao contrário das esposas de outros líderes
comunistas, Jiang não foi convidada a participar das celebrações, nem foi
autorizada a ocupar um cargo no Comitê Central do partido, como o restante
dessas mulheres.
"Ela ficou extremamente ressentida com
isso e manteve seu ressentimento em segredo por anos", disse o jornalista
norte-americano Sidney Rittenberg, que era tradutor do líder chinês na época,
ao programa Witness da BBC.
Enquanto Mao organizava brigadas de trabalho
e fazendas coletivas para tentar industrializar a economia agrária tradicional
chinesa a todo vapor, sua esposa passou grande parte da década de 1950 viajando
para Moscou para receber tratamento médico para uma série de problemas de
saúde.
Uma vez recuperada, passou a ocupar cargos
menores em comitês governamentais dedicados ao controle das artes,
especialmente teatro e cinema.
A ex-atriz estava especialmente interessada
em uma das formas de arte mais populares e influentes da China: a ópera.
Jiang acreditava que ópera tradicional chinesa não representava valores e realidade da China comunista
Ópera tradicional chinesa
Ela estudou mais de mil óperas tradicionais e
apresentou um relatório bastante crítico, afirmando que todas versavam sobre
imperadores, concubinas e monstros, e nada tinham a ver com a sociedade chinesa
da época, composta principalmente por camponeses, ou com a luta comunista.
Mas suas queixas foram ignoradas e seus modos
causaram rejeição generalizada.
Seus esforços para censurar essas obras, ou
atores que ela considerava muito tradicionais ou pró-ocidentais, deram-lhe uma
reputação de uma pessoa "agressiva" e "arrogante", e seus
críticos conseguiram removê-la do cargo.
Revolução cultural
Mas tudo mudou quando, ironicamente, o
"Grande Salto Adiante" de seu marido fracassou.
O chamado processo de industrialização
promovido por Mao falhou miseravelmente, levando milhões de pessoas à morte de
fome entre 1958 e 1962.
Quando os outros líderes do PCC retiraram seu
apoio a Mao, o "Grande Timoneiro" se voltou para um grupo próximo de
aliados, incluindo sua esposa, para retomar o poder.
Em 1966, esse grupo de comunistas radicais
lançou o que ficou conhecido como a "Revolução cultural": uma
convocatória para pessoas mais jovens se rebelarem contra as autoridades
tradicionais, os "burgueses" e os capitalistas, que, de acordo com
Mao, ameaçavam a revolução comunista.
A maioria dos analistas concorda que o
objetivo principal dessa revolução era expurgar os inimigos de Mao do partido,
incluindo Deng Xiaoping, que anos depois se tornaria presidente.
A verdade é que a Revolução cultural lançou
Jiang Qing ao estrelato político, dando-lhe fama e poder que não havia
conseguido em sua carreira como atriz.
Mao a nomeou como uma das principais
autoridades do PCC e Jiang se tornou uma de suas principais e mais fervorosas
porta-vozes.
Sua estreia na arena pública foi um discurso
emocionado que proferiu aos alunos da Universidade de Pequim em 1966.
Kathy Yeng, uma das jovens presentes naquele
dia, disse à BBC em 1977 como Jiang conseguiu emocioná-la.
"Ela falou sobre sua visão da arte
proletária, como ela acreditava que a China tinha que desenvolver sua própria
arte proletária, não seguir a do Ocidente ou a da URSS. Disse que as
autoridades do Ministério da Cultura não lhe deram ouvidos e que estava sendo
oprimida, assim como nós."
Violência
O apelo de Mao, de Jiang Qing e de seus apoiadores
para que os jovens se mobilizassem desencadeou um dos períodos mais trágicos da
história recente da China.
Escolas e universidades foram fechadas e
milhões de estudantes ingressaram na Guarda Vermelha, como se tornou conhecido
o grupo de jovens militantes que aterrorizava educadores, intelectuais e
qualquer autoridade considerada "contra-revolucionária".
Muitas das pessoas humilhadas e atacadas
acabaram cometendo suicídio.
Mao e seus apoiadores também fomentaram o
culto à personalidade, publicando um livro com citações do líder - o famoso
"O Pequeno Livro Vermelho" - que todos deveriam possuir e memorizar,
para provar sua lealdade ao movimento.
Cartazes com a imagem de Jiang Qing segurando
o livro foram exibidos em todo o país e a esposa de Mao se tornou a mulher mais
poderosa da China.
Muitos se lembram de sua sede de vingança
contra todos que a desprezavam, mesmo décadas antes.
"Havia um general, lembro que ela o
tinha como alvo e o acusava de querer esmagar a Revolução Cultural nas escolas
militares. E esse velho guerreiro, que certamente não era covarde, empalideceu
completamente", lembrou Rittenberg, que, da mesma forma que os outros
estrangeiros, foi preso durante esse tempo.
Alguns testemunhos afirmam que Jiang também
ordenou a prisão de pessoas com quem socializou durante seu tempo como atriz em
Xangai, em uma tentativa de esconder seu passado infame.
Revolução artística
Uma das principais tarefas que Mao confiou à
esposa foi revolucionar a arte.
Para Jiang, foi a ocasião perfeita para
enterrar as óperas tradicionais que tanto criticava.
A ex-atriz promoveu a criação de um novo
gênero artístico que se tornaria um dos pilares da propaganda comunista: as
"óperas revolucionárias" (também chamadas de "óperas
modelo" ou Yangbanxi).
Esses shows, que combinavam ópera chinesa tradicional
com musicais ocidentais, mesclando música e balé, foram os únicos permitidos
durante a década que durou a revolução (1966-76), e seus protagonistas eram
bravos camponeses que lutavam contra proprietários malvados, invasores
japoneses ou outros inimigos da revolução.
As oito óperas-modelo criadas a partir do
incentivo de Jiang hoje fazem parte da cultura popular chinesa.
Mas a influência da "primeira-dama"
foi muito além do mundo artístico.
Além de mobilizar os jovens com suas obras,
seus discursos e seus cartazes, ele também tinha grande poder de decisão.
"Como um membro-chave do Grupo Central
da Revolução Cultural, ela comandou grande parte da política à medida que o
aparato formal do partido comunista foi desmontado", diz o especialista em
China Anthony Saich, professor de Assuntos Internacionais e diretor da Kennedy
School of Government da Universidade Harvard (Estados Unidos), à BBC News
Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC.
Saich, autor de vários livros sobre a
história política da China, acredita que Jiang "foi claramente uma
figura-chave entre os líderes mais radicais do período".
A "Gangue dos Quatro"
Mas a mulher mais poderosa da China estava
perdendo influência em meados da década de 1970.
Primeiro, quando seu marido ordenou ao
Exército que parasse com os abusos da Guarda Vermelha, e acabou desmantelando a
militância radical.
E, finalmente, com a morte de Mao, que a
deixou sem seu principal apoio político.
Um mês após a morte do "pai" da
RPC, em setembro de 1976, os líderes do PCC ordenaram a prisão de Jiang, quem
acusaram de ser a chefe da "Gangue dos Quatro", como chamavam os
principais aliados de Mao.
A nova direção do partido acusou Jiang e a
suposta "gangue" de serem os verdadeiros responsáveis pela violência
que a Revolução Cultural havia desencadeado, isentando de culpa o fundador do
partido.
De acordo com essa versão, que muitos no PCC
mantêm até hoje, Mao cometeu erros, mas havia defendido uma "luta
pacífica".
Saich, como outros especialistas, acredita
que Jiang Qing foi usada como uma espécie de bode expiatório.
"É claro que os líderes pós-Mao tentaram
proteger suas reputações. Para serem credíveis, tiveram que aceitar que Mao era
parcialmente culpado, mas para proteger sua reputação (e na verdade a do
partido), encontraram outros a quem pudessem atribuir a culpa pelos excessos
ocorridos."
"Jiang Qing e os outros membros da
Gangue dos Quatro, junto com Lin Biao (o ex-líder militar, um aliado de Mao,
que morreu em circunstâncias suspeitas em 1971), foram culpados por isso",
explica o acadêmico de Harvard.
Jiang, que alegou durante seu julgamento que
era simplesmente o "cachorro" de Mao, seguindo suas ordens, foi
condenada à morte em 1981, mas teve sua sentença comutada para prisão perpétua.
Depois de passar uma década na prisão, morreu
em maio de 1991, aos 77 anos, sob fiança para receber tratamento médico para
câncer na garganta.
A versão oficial indica que ela se suicidou,
enforcando-se. Mas, como grande parte de sua vida, os detalhes do que aconteceu
são mantidos em segredo.
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