Por Euler de França Belém – Fonte: Revista Bula
Num dia de sol escaldante, em Itabira, Carlos
Drummond de Andrade pôs um retrato de Chico Buarque de Holanda na parede e
gritou para Abgar Renault: “‘Construção’ é o maior poema da Língua Portuguesa!”
(1) Sim, com exclamação. De Pitangui, depois de ouvir o médico-memorialista
Pedro Nava, Gustavo Capanema (2) ligou e disse: “Está ficando doido, amigo
Carlos? Você e Manuel Bandeira escreveram os mais belos poemas da Língua Portuguesa”.
Drummond desligou o telefone, atravessou a Rua Casemiro Andrade, olhou para uma
casinha de sapé e quase foi atropelado por um ciclista desavisado (consta que
matar poetas dá um azar infinito). Depois, voltou para sua casa, ligou para
João Cabral de Melo Neto e indagou: “Joãozinho, qual é o maior poema em Língua
Portuguesa?” Severinamente, João Cabral tomou uma aspirina, a cabeça doía e,
depois de pensar dois segundos, confirmou: “‘Construção’ é o maior poema em
Língua Portuguesa! (3) A exclamação foi “ouvida” em Itabira, onde Drummond lia
e traduzia Edna St. Vincent Millay, Proust e Knut Hamsun. Já Antonio Candido, o
mais importante crítico literário do Brasil, disse sobre Chico Buarque: “Uma
grande consciência inserida num grande talento”. (4)
Recomendo, antes de continuar, que o leitor confira as quatro notas de rodapé… para não sair espalhando fake news.
No livro “Uma História da Música Popular
Brasileira — Das Origens à Modernidade” (Editora 34 — 501 páginas), Jairo
Severiano diz que o lançamento do LP “Construção” em 1971 — há 50 anos — é uma
prova do amadurecimento artístico e intelectual de Chico Buarque. O compositor
e cantor tinha 27 anos — um Rimbaud dos trópicos. “Além da canção homônima, de
qualidade rara na música popular e que é uma elegia a um operário morto no
exercício da profissão — um dos vários anti-heróis privilegiados em sua obra —,
e da amarga e irônica ‘Deus lhe pague’, integrantes da vertente social, este
disco apresenta a originalíssima ‘Cotidiano’, que introduz em seu repertório
outro importante segmento, o do realismo conjugal”.
Música é música, poesia é poesia. Mas quem há
de contestar que “Construção” é um poema de primeira grandeza? Ninguém, por
certo. Pode-se sugerir que resiste tanto como poema quanto como música. A letra
é um espetáculo em si — o criador afia a língua como se estivesse a afiar um
punhal para um duelo, sugerindo que forma e conteúdo, costurados por “fios” de
diamantes, são uma coisa só —, e a música, que a potencializa, é um esplendor
criativo. É aquele momento em que os deuses se unem para transformar um artista
em mestre, diria, quiçá, o bardo e crítico americano Ezra Pound. Assim como
“Faroeste Caboclo”, de Renato Russo, a música de Chico Buarque daria uma ópera.
Um chicólatra na calorenta Porangatu
Lembro-me quando meu pai, Raul, que era
chicólatra, recebeu o LP “Construção”, por meio do reembolso postal. Durante
dias, ouviu o disco e sempre repetia “Construção”. “Néctar dos deuses”, ele me
disse. Alguma coisa assim. Chamou Geraldinho Fernandes de Carvalho, um de seus
melhores amigos, para ouvir. Assim fez com várias pessoas. Ao final, Raul sabia
a música de cor e salteado, como se dizia então. Tomei gosto por aquilo e
sempre que meu pai saía para o trabalho eu pegava a radiola — que era sagrada —
e ouvia Chico Buarque. Depois, mexia na penteadeira em busca de livros de Jorge
Amado e, sim, Adelaide Carraro (de quem li toda a obra, escondido).
Admito que, ao contrário do meu pai, eu não
entendia bem a música e as críticas de Chico Buarque, que, na época, ainda não
havia descartado o Holanda.
Curiosamente, um ano depois do lançamento de
“Construção”, em 1972, o Exército instalou um quartel quase ao lado da nossa
casa (na Praça Nossa Senhora da Piedade). Havia soldados de vários Estados,
inclusive, salvo engano, paraquedistas do Rio de Janeiro. Eu sabia por meu pai,
que era ligado ao PCB (José Sobrinho Fernandes, de Uruaçu, era seu elo no
Partidão) — portanto, avesso à ideia de luta armada —, que os militares estavam
combatendo a Guerrilha do Araguaia.
Eu, de 11 anos, e Raulzinho, meu irmão de 6
anos, estávamos mais interessados na goiabada e na marmelada do quartel (os
doces eram armazenados em caixotes de madeira). Não me lembro de ter ouvido a
palavra “guerrilha” nenhuma vez — parece que os soldados eram proibidos de
falar sobre o assunto com civis — e só uma vez escutei o termo “terroristas”,
no plural. Lembro-me de alguns soldados, cabos e sargentos falando que estavam
à procura de namoradas. Contavam piadas e riam muito. Na primeira vez que
pousaram helicópteros do Exército em Porangatu — o aeroporto ficava dentro da
cidade (e uma vez teve um acidente com mortes) —, a população compareceu em
peso para vê-los. Eu, na primeira fila, corri cerca de dois quilômetros para
não perder nada. Ficamos, todos nós, impressionados e, claro, cheios de poeira.
Ao voltar para casa, tomei um banho e fiquei
ouvindo rádio — notícias de esporte, pois era torcedor do Pelé Futebol Clube,
quer dizer, do Santos. Meu pai chegou do trabalho, desligou o rádio — mais
tarde, o ligaria para ouvir a “Voz do Brasil”, e depois me cederia o aparelho para
eu ouvir notícias esportivas e música — e ligou a radiola. Voltou a ouvir
“Construção” — pela enésima vez. Hilda César, minha gentilíssima tia, olhou a
capa do LP e disse, olhando para Raul: “Você é parecido com o Chico”. Meu pai
ficou orgulhoso. De fato, eram parecidos. “Raul ouve tanto o mesmo disco que
vai acabar furando-o”, disse Geraldinho. Quando meu pai saiu para comprar
cigarro — Minister (minha mãe preferia Hollywood) —, na venda de dona Luzia e
seu Hermes, peguei o LP e olhei detidamente. Não havia furos. Fiquei
desconcertado.
Entre as décadas de 1960 e 1980, o lançamento
de um disco de Chico Buarque era um acontecimento. Parece que o Brasil ficava
esperando por outra sacada “genial” do artista “metralhando” verbal e
musicalmente a ditadura. O que impressiona é que sua obra, respondendo a um
tempo histórico, como arte combatente, não tenha ficado, no geral, inteiramente
datada. Pelo contrário, resiste com um vigor artístico raro. Talvez porque o
esteta não tenha permitido que o engajado se tornasse a força predominante.
Geraldo Vandré — que eu ouvia e ainda ouço — talvez tenha ficado datado
exatamente porque o engajado acabou por controlar o esteta. Mas há certa
energia em Vandré que possivelmente o levará a ser revalorizado.
Inovação estética e a história do jabá
No livro “Chico Buarque” (Publifolha, 177
páginas), Fernando Barros e Silva, corroborando Jairo Severiano, assinala: “Com
ela [‘Construção’], Chico finalmente se veria livre do estigma de ser o eterno
autor de ‘A Banda’. Mais do que o sucesso da nova obra — estrondoso —, o que
lhe importou foi a renovação estética que ela representava. (…) Não há mais
nada inocente em ‘Construção’”.
Fernando Barros e Silva frisa que
“Construção” é uma canção genial — com “41 versos terminados todos em
proparoxítonas”.
“Em ‘Construção’, Pedro Pedreiro é como que
esmagado pelo trem que eternamente esperava. Desaparecem a atmosfera algo
ingênua e a melodia ainda impregnada de uma esperança que a letra dos anos 60
projetava no horizonte. Surge em seu lugar um motivo melódico recorrente, como
a indicar um tempo presente sufocado e circular, que se auto-consome no
liquidificador de imagens que vão sendo permutadas e embaralhadas até o
transtorno total de seu sentido. O arranjo de Rogério Duprat, maestro dos
tropicalistas, parte do violão para ir instalando a cada estrofe uma nova
camada de sonoridades, como andaimes, até chegar à balbúrdia sinfônica e à
entropia insuportável no final”, sublinha Fernando Barros e Silva. O
pesquisador poderia ter acrescentado que a música acaba por reinventar a letra
— o, digamos, poema.
“A construção da canção equivale, assim, à
dissolução do operário oculto na letra — ou, dito de outra maneira, a canção
descreve, realizando-o, um processo de alucinação das coisas, de um delírio
inscrito na própria realidade, do qual o sujeito-máquina é parte e vítima, mas
no qual não se reconhece”, anota Fernando Barros e Silva. “A partir de ‘Construção’
(…), a obra de Chico ganha uma dicção nova, amadurecida, mais corrosiva e
muitas vezes sarcástica.”
No livro “Chico Buarque — Histórias de
Canções” (Leya, 355), Wagner Homem conta que, numa entrevista à revista
“Status”, em 1993, “Chico confessa que inicialmente tudo não passava de uma
experiência formal, e que a ideia de narrar os últimos instantes de vida de um
operário veio depois da música quase pronta. Com ‘Construção’ ele chegou
próximo da tão falada unanimidade, recebendo elogios de críticos de todas as
tendências. Os de direita, entretanto, não perdiam a oportunidade para uma
agressão gratuita e de péssimo gosto, como a do jornalista David Nasser, que
sugeriu a inclusão de mais uma proparoxítona: ‘Médici’, o nome do presidente”.
“A riqueza da melodia, o primor da letra em
dodecassílabos, alternando rimas em proparoxítonas, associados aos arranjos do
maestro tropicalista Rogério Duprat, são, em grande parte, os responsáveis pelo
sucesso do disco”, postula Wagner Homem.
Há uma história curiosa relatada por Wagner
Homem: “Os louros tinham também que ser creditados a um outro colaborador, de
cuja existência Chico só tomou conhecimento anos depois, quando comentava com o
diretor de sua ex-gravadora as dificuldades que enfrentava por não ser artista
de aparecer muito em televisão ou em shows patrocinados por rádios. Ele
reclamava do jabá — dinheiro que as gravadoras pagam às rádios para tocar
determinadas músicas. Em entrevista para a revista ‘America’, do Memorial da
América Latina, em 1989, ele desvela o personagem: ‘Aí, meu antigo patrão me
explicou que a questão do jabá sempre existiu. Eu disse que sabia, é claro, mas
que a coisa hoje é muito mais violenta. E então veio a revelação: ‘Você lembra
do sucesso de ‘Construção’, uma música difícil, pesada, muito longa para a
época, e que tocava no rádio o dia inteiro? Pois paguei muito jabá por ela’”.
Citado por Wagner Homem, o jornalista
Humberto Werneck relata que, para liberar ‘Construção’, o advogado João Carlos
Muller Chaves, da Philips, usou um método perfeito: “Ao entregar a letra, num
golpe de ironia e audácia, pediu que a proibissem; os censores, então, como que
para contrariá-lo, liberaram ‘Construção’ sem cortes”. Pode ser verdade. Mas o
censor terá compreendido a força crítica da música? Talvez não. É provável que
tenha pensado que era uma crônica do cotidiano — quase uma notícia de jornal,
quiçá das páginas de polícia.
Um país que deu muito certo
Um país que tem Machado de Assis, Graciliano
Ramos, Cecília Meirelles, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, João
Cabral de Melo, Osman Lins (quem não leu “Avalovara” não pode ir para o
Paraíso; tem de ficar ao menos um mês no Purgatório, para ler o livro. Senão
irá direto para o Inferno), Clarice Lispector, Bernardo Élis, Lygia Fagundes
Telles, Siron Franco, César Lattes, Antonio Candido, Wilson Martins, Régis
Bonvicino, Angélica Freitas, Nise da Silveira, Euclides da Cunha, Gilberto
Freyre, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Darcy Ribeiro, Raymundo
Faoro, Noel Rosa, Dorival Caymmi, Bidu Sayão, Villa-Lobos, Guiomar Novaes,
Ataulfo Alves, Elis Regina, Gal Costa, João Gilberto, Paulinho da Viola, Maria
Eugênia, Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Gilberto Gil e,
entre tantos outros, Marisa Monte — uma galeria de astros, nada distraídos —,
já deu certo, muito certo. O Brasil, em definitivo, não é símbolo de Bolsonaro,
coisa passageira, e Fernando Collor.
Notas de esclarecimento
1 — Carlos Drummond de Andrade não fez tal
elogio à música de Chico Buarque. Mas, se tivesse feito, quem iria discordar?
2 — João Cabral de Melo Neto e Drummond não
conversaram, que se saiba, a respeito de “Construção”. O bardo pernambucano não
fez o elogio à música apontado acima.
3 — A conversa entre Drummond e Gustavo
Capanema, ministro da Educação de Vargas, é puramente ficcional.
4 — O comentário de Antonio Candido é citado
no livro “Uma História da Música Popular Brasileira — das Origens à
Modernidade”. Está na página 366.
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