Fonte: Edison Veiga / BBC News Brasil.
Celebrada por católicos no dia 13 de dezembro, Santa Luzia é normalmente representada com uma imagem sacra bastante curiosa.
Jovem bonita de bochechas
coradas, carrega uma folha de palmeira — item comum no imaginário religioso,
pois representaria a imortalidade — e uma bandeja dourada. Dentro, está aquilo
que soa mais inusitado: um par de olhos.
Luzia de Siracusa, ou Lúcia de
Siracusa, é a santa considerada padroeira dos olhos, da visão.
Mas como ela viveu em uma época
de cristianismo incipiente e parcos registros, sua biografia carece de
informações confiáveis — e há diferentes versões para explicar sua santidade e
mesmo essa sua propriedade de zelar pelos olhos dos fiéis.
"Luzia, como os demais santos mártires do seu tempo, por volta do ano 280 d.C., não tem muitos escritos que afirmem uma verdade histórica no sentido da historiografia, entretanto o martirológico cristão os descreve de forma peculiar", pontua padre Jerônimo Gasques, mestre em Teologia Dogmática e autor de, entre outros livros, Santa Luzia - O Brilho de Uma Luz - A Protetora dos Olhos.
Luzia nasceu em Siracusa, na
Sícilia, ilha do Mediterrâneo que hoje faz parte da Itália, no ano de 283. Na
época, o cristianismo era perseguido pelo governo romano. Sua família, contudo,
era cristã e, ao que consta, gozava de uma vida de riquezas.
"O pai, que se chamava
Lúcio, morreu quando ela ainda era muito jovem", conta o estudioso de
cristianismo antigo Thiago Maerki, pesquisador na Universidade Federal de São
Paulo (Unifesp) e associado da Hagiography Society, nos Estados Unidos.
A pequena órfã passou a
infância dedicando-se aos cuidados da mãe, Eutíquia, que sofria de graves
hemorragias internas. Certa vez, a menina peregrinou até a cidade de Catânia,
também na Sicília, para rezar pela saúde da mãe na tumba de Santa Águeda
(235-251).
Ali, teve uma epifania e,
acreditando que Deus curaria sua genitora, Luzia decidiu consagrar sua vida ao
cristianismo, fazendo voto de virgindade.
"A esse tempo, ela estava
prometida em casamento com um jovem pagão, e queria se livrar desse
compromisso", diz Maerki.
"Sua mãe, adoecida,
desejava o seu casamento com um fidalgo da nobreza. No entanto, isso a
desagradava, pois ela queria viver em castidade na consagração a Deus e ao seu
Senhor, como cristã", completa Gasques.
"Segundo a tradição, Santa
Águeda não apenas lhe curou a mãe, mas também lhe revelou que sofreria o
martírio e seria venerada em toda a Siracusa", comenta o pesquisador e
escritor J. Alves, membro da Academia Brasileira de Hagiologia e autor do
livro Os Santos de Cada Dia e de Santa Luzia - Novena
e Biografia.
Denúncia e perseguição
religiosa
De acordo com Maerki, após essa
cura, a mãe dispensou a menina de cumprir o casamento prometido.
A partir dali, não só Luzia se
dedicaria a Deus como também não teria mais receio de expôr sua cristandade,
então vivenciada apenas na clandestinidade.
"Santa Luzia foi uma
mulher corajosa, que escolheu viver na fé e arriscar sua vida ao assumir a
condição de seguidora de Jesus, em um tempo em que isso era considerado crime
grave", diz Alves.
Essa conduta da moça, contudo,
desagradou o jovem que queria desposá-la.
Contrariado, o jovem
pretendente decidiu denunciá-la ao procônsul Pascásio — na estrutura romana,
procônsul era o magistrado encarregado de administrar cada província, como um
governador ou um prefeito.
Naquela época, Roma era
comandada pelo imperador Diocleciano (243-312), cuja marca foi a perseguição
aos que professassem a fé cristã.
"O jovem preterido fez
isso com a pretensão de que ela fosse perseguida pelo regime de
Diocleciano", contextualiza Maerki.
Dito e feito: Luzia foi presa
pelas forças do governo. Pascásio, então, teria se empenhado de todas as formas
para que ela renunciasse ao cristianismo e aderisse aos rituais pagãos romanos.
"Ele teria ordenado que
ela fizesse sacrifícios aos deuses romanos mas, segundo as fontes de relatos
hagiográficos, Luzia teria respondido que o sacrífico puro diante de Deus seria
visitar as viúvas, os órfão e os peregrinos que param por meio da angústia e da
necessidade que sofrem", diz Maerki.
A essa altura, com o
consentimento da mãe, Luzia havia decidido se desfazer de todos os bens da
família em favor dos pobres, promovendo grandes doações àqueles que viviam na
precariedade absoluta.
"Ela dizia que sua herança
seria toda distribuída aos pobres", comenta o pesquisador.
A relutância de Luzia em aderir
a fé oficial aumentou a irritação de Pascásio.
"Ele ordenou que seus
soldados a levassem para um prostíbulo, um bordel", narra Maerki.
A ideia era que ali ela fosse
estuprada.
"Ele teria dito que a
levaria a um lugar 'de perdição, onde o Espírito Santo iria embora'. Os
soldados amarraram suas mãos e seus pés com cordas mas, segundo a hagiografia,
ela permaneceu fixa como uma rocha e ninguém conseguia movê-la dali."
Então, a tortura continuou.
Pascásio mandou submetê-la a flagelos com óleo fervente pelo corpo. Tudo para
que a moça renegasse a fé.
Maerki conta que são duas as
tradições hagiográficas a respeito da santa. Na versão mais antiga, uma
narrativa grega do século 5, ela teria sido martirizada com a decapitação.
Já no relato latino, escrito
provavelmente entre os séculos 6 e 7, a morte de Luzia é descrita como causada
por diversos golpes de espada.
Olhos
A questão dos olhos, de acordo
com o hagiólogo, teria sido uma construção tardia.
"Trata-se de uma tradição
lendária que surge na Idade Média, e é por meio dessa lenda que Santa Luzia
acaba sendo considerada a protetora da visão", argumenta Maerki.
"Diz-se que na verdade ela
tinha os olhos muito bonitos e que isso perturbava o pretendente dela. Diante
disso, ela teria arrancado seus olhos e oferecido a ele em uma bandeja. Por
milagre, imediatamente um novo par de olhos surgiu em seu rosto."
De acordo com essa versão, o
pretendente teria ficado impressionado com o que acabara de presenciar e, por
conta disso, acabaria aderindo ele também ao cristianismo.
"Outra tradição é que
Pascásio teria ordenado a seus soldados que arrancassem os olhos de Luzia e,
quando eles assim o fizeram, Deus teria concedido a ela novos olhos ainda mais
bonitos do que os arrancados pelos soldados", relata Maerki.
É a versão adotada pelo padre
Gasques, por exemplo.
"Inicia-se uma sessão de
torturas sem êxito da parte opressora tentando faze-la desistir do seu intento.
Mantém-se firme na sua opção e, por fim, é autorizado a extração de seus olhos
e entrega-lhes em uma bandeja de prata. Nas suas últimas palavras, Luzia se
extasia de joelhos e tira de si as últimas inspirações e o verdugo, com a
espada afiada lhe dá o derradeiro golpe no pescoço, cortando-lhe a cabeça. Era
o dia 13 de dezembro de 304 d.C.", narra ele, sobre o martírio da santa.
"A mistura de várias
lendas e histórias sobre os olhos de Luzia vnao acabar construindo essa
tradição de ela ser a padroeira da visão", diz Maerki.
Provavelmente essa ligação da
santa com os olhos tenha uma origem etimológica. Luzia, afinal, vem do latim
lux, ou seja luz.
"Santa Luzia, cujo nome
significa luz, é a portadora da luz e a protetora dos olhos", explica
Alves.
"Segundo uma narrativa
edificante do final da Idade Média, o pretendente de Santa Luzia havia ficado
fascinado pela beleza e brilho de seus olhos. Então, ela os arrancou e os
ofertou a ele. Entretanto, para espanto de todos, seus olhos se restabeleceram
milagrosamente, ainda mais formosos que antes", diz ele.
Fato é que desde os primeiros
séculos do cristianismo ela passou a ser invocada para curar as doenças da
visão. Alves comenta que os olhos "são as janelas por onde a luz penetra o
nosso ser, permitindo que contemplemos a beleza das coisas e acolhamos, pelo
olhar, nossos semelhantes".
"Ela é invocada não apenas
contra a cegueira física, mas também contra a cegueira que nos impede de
enxergar que Deus é nossa luz e a vida só vale a pena quando se torna um ato de
amor total a ele e ao próximo", frisa o pesquisador.
Devoção
Alves conta que a devoção a
Luzia passou a ocorrer, em nível local, logo após sua morte.
"O túmulo dela em Siracusa
logo se tornou lugar de peregrinação, para onde as pessoas acorriam a fim de
venerá-la e invocar sua proteção", comenta.
"Sobre seu sepulcro foi
erguida uma igreja e, desde o século 4º, ela já era venerada entre as mais
ilustres virgens e mártires da Igreja."
"A inscrição encontrada no
cemitério de São João, em Siracusa, e a inserção de seu nome no cânone da
missa, tanto em Roma quanto em Milão, conferem-lhe lugar importante na história
da Igreja e uma missão: ser uma luz nos caminhos escuros da humanidade",
acrescenta.
O pesquisador lembra,
entretanto, que seu culto se tornou mais propagado a partir do pontificado do
papa Gregório Magno (540-604), pois foi ele quem inseriu o nome de Luzia no
cânone da missa, juntamente ao de outras santas.
"Assim, com a inclusão da
missa em memória dessas santas nos missais e livros litúrgicos, a devoção a
elas se difundiu por toda a Igreja", explica Alves.
No Brasil, a colonização
portuguesa acabou trazendo a devoção.
"São muitas as localidades
que trazem o nome de Santa Luzia", comenta o hagiógrafo.
"Já em 1773 foi lhe
erguida, na antiga Fazenda de Santa Luzia, uma capela em sua honra. Essa capela
daria origem à cidade de Mossoró, no Rio Grande do Norte. Atualmente a catedral
de Mossoró ocupa o lugar dessa antiga capela e a festa de Santa Luzia é um dos
principais eventos religiosos da cidade, reunindo milhares de devotos."
Padre Gasques entende haver um
papel social nessa devoção.
"É uma devoção que nos
anima à caminhada", comenta, lembrando que certa vez uma paroquiana
contou-lhe que saiu da consulta oftalmológica "tão desanimada" que
sua primeira reação foi rezar para Santa Luzia.
"Essa devoção vem de
encontro às inúmeras enfermidades dos olhos. A procura dos pobres ao
atendimento ocular, certamente é deficiente. Os recursos médicos na área da
oftalmologia, clínicos e remédios são inacessíveis por uma parte da sociedade
que tem, apenas, a fé em Deus e aos santos a quem recorrer", analisa o
padre.
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